Ontem foi um dia complicado.
No dia antes havia-me deitado muito tarde e ontem acordei muito cedo. O normal.
Fui para o emprego 1, sai do emprego 1 à hora do almoço para o emprego 2, sai do emprego 2 pelas 17 horas para ir dar uma palestra ate as 1830 horas a que fui para o emprego 3 até as 22 horas, hora a que fui ter a um restaurante com uma amiga.
Eu agora não janto fora. Não janto fora nem almoço nem como fora, nem um monte de outras coisas que sabem bem mas onde se gasta dinheiro. Agora não posso gastar dinheiro. Ou melhor mais do que aquele que está já previsto gastar. Em breve vou fazer uma escritura e tenho muito de pagar. Não custa muito só um bocadinho. É como arrancar um dente é por uma boa causa. No final depois da tempestade será bom o resultado. Mas fui lá ter.
Fui ter com a E. a um restaurante… com a E. só não com a A., a A A., a T., o C., a T. C., a I. e a M.. Todos nós somos um grupo de apoio que temos em comum termos cancro. Fazemos terapia de grupo ou melhor apoio de grupo é mais isso.
A E. ontem fazia anos… não é anos de aniversário de nascimento nada disso mas anos que soube que estava em remissão clínica o tão esperado aniversário dos 60 meses… quem me dera lá chegar.
Quem deu prendas ontem foi a E. uma carta pessoal e fechada a cada um de nós, como que a despedida dela que agora vai seguir sem nós, mas connosco na sua vida livre de cancro.
A E. conhece-me há cerca de 24 meses… não é muito tempo se pensarmos bem mas foram os piores meses da minha vida onde tudo aconteceu: obtive o doutoramento, foi me diagnosticado um cancro, perdi 3 filhos, fui sujeita a 3 cirurgias, fiz 19 meses de quimioterapia, quis mudar de emprego, arranjei muitos empregos, entretanto encontrei mesmo o que queria, descobri que tinha HPV e não podia esperar tempo nenhum para ser tratado, vendi a alma ao Diabo para o fazer, mentiram-me muito, enganaram-me muito, aprendi a perdoar, aprendi a meditar, aprendi alemão, aprendi a coser, aprendi a fazer contabilidade, aprendi escrita criativa, fiz teatro, cozinhei muito, divorciei-me, arranjei mais um cão, fiz uma peregrinação que há muito queria a pé, chorei como nunca pensei, descobri quem é amigo a sério e quem é companhia de copos, deixei de fumar, deixei de beber bebidas alcoólicas, perdi um familiar que amava muito, viajei para 9 países diferentes e …. Sei lá…
Custou muito.
A E. só me conhece deste tempo não me conhecia de antes disto tudo. Mas ninguém diria pela carta.
Com a autorização dela transcrevo.
“Minha querida.
Tu ficaste para o fim, não porque não sejas importante mas sim porque és a mais importante, também a mais difícil e também a mais nova de nós todos.
O que te irei dizer a ti? É fácil muito fácil. Desejo que sejas feliz, profundamente feliz e que tenhas muita saúde e amor e tu sabes que comigo não são aqueles desejos que se escrevem nos cartões de aniversário e se repetem todos os anos sem sentir. Saúde bem precisas, amor precisas mais ainda.
Tu és a pessoa mais inteligente, corajosa e generosa que eu conheço. Mas também a mais sofrida.
Dizes que não, que estas bem e lá sais a correr de mochila (sempre carregadíssima) às costas para dar mais uma aula, para mais uma reunião, para mais uma palestra para mais uma festa que tens de organizar, para mais uma fornada de compotas ou biscoitos para ajudar alguma instituição disto ou daquilo ou para dares mais uma explicação. Muito corres. Sempre corres, mesmo quando não devias, mesmo quando não te apetece. Não corras pela tua saúde. Mesmo. Eu sei que achas que tens de continuar a correr e até eu penso que sim dai este meu pedido urgente para ti.
Tu dás tanto. A todos nós deste-nos tanto sempre. A todos. A mim tanto tanto. Ouves mas ouves mesmo, e dás festas, carinho, palavras verdadeiras, duras às vezes, tantas vezes custam a ouvir mas sempre te vêm da alma, sempre são honestas.
Com tudo o que fazes nunca falhas nada não sei como consegues. Não sei mesmo.
Sei que o caminho ultimo não tem sido fácil sei que ter de lidar com um bicho (nota a quem lê bicho é cancro) e ao mesmo tempo com um bichinho não comparticipado, mais com um ex-marido completamente ausente, um pai com muitos problemas de saúde, a perda de três anjos teus, trabalhos muito exigentes, o teu perfeccionismo, um divorcio solitário e duríssimo, os chamados três D de uma vez só, a tal mentira que nunca explicas e que te faz tanto mal… mereces tudo de bom.
Colo, amor, muito colo, mais amor. Festas, carinho, alguém que te leve a sair que te faça sorrir, que te faça ficar mole, que te quebre essa dureza que tiveste de construir fase ao que tens passado. Alguém que te dê muitas festas, que cozinhe para ti, que te leve a viajar, que te leve ao Eleven e te corte o bife, que vá contigo ao médico, que vá dançar contigo, correr contigo, que se deite contigo a ler no sofá que te faça parar de trabalhar o fim-de-semana todo, que te dê um filho, que faça amor contigo, que te faça sentir a pessoa mais importante do mundo e o mostre e não o diga apenas, uma pessoa que resolva os teus problemas e não te crie mais problemas para tu resolveres, alguém que te dê confiança e estabilidade para que não tenhas de trabalhar para além do que a lei da vida e dos homens permite, alguém que te faça sentir plena. Alguém que te dê o tempo que tu precisas para seres tu para te encontrares contigo, alguém que não te faça apenas perguntas mas dê respostas, alguém que não te minta e que te ame muito mais em acções que em palavras.
É isso que eu quero para ti. Só isso nada mais tudo o resto tu vais lutar por ter, amor não pedes, fechaste a alma, desiludiram-te. E então? Da próxima será melhor não é assim?
Deixa fluir, não perdoes tudo, sê exigente com o futuro e que sejas muito amada.
Saúde minha querida.
E.”
Lindo não?
Eu achei. Gosto muito de ti E. Muito.
Bons caminhos!