segunda-feira, 20 de abril de 2009

O meu fim-de-semana

Adoro morangos.
Adoro frutos vermelhos mas gosto especialmente de morangos.
Gosto de compota de morango.
Alias é a única compota que consumo.
Este fim-de-semana fiz como a formiga, a guardar para o inverno e fiz tudo o que havia para fazer com morangos: compota, sumo, polpa, pickles e gelado.
Nos dias frios que virão bem me vai saber.
Por achar que não controlo a minha vida mas que a vida me controla a mim foi me sugerido ler o livro “O escafandro e a borboleta” e ver o filme com o mesmo nome.
Amei os dois. Nem sei qual mais.
Acho que o filme.
Como tudo se torna pequeno quando em comparação? Para quê mapear a vida se ela faz como quiser.
Para eu maníaca do controlo da minha vida aterrador a experiência.

Bons caminhos!




O escafandro e a borboleta
Jean-Dominique Bauby, nascido em 1952, pai de dois filhos, era redactor-chefe da revista francesa Elle quando foi vítima de um locked-in syndrome, uma doença rara, que o deixou lúcido intelectualmente, mas paralisado por completo, só podendo respirar e comer por meios artificiais e mover o olho esquerdo.
Com este olho piscava uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Com ele chamava também a atenção do seu visitante para as letras do alfabeto, formando palavras, frases, páginas inteiras. Assim escreveu este livro: todas as manhãs, durante semanas, decorou as suas páginas antes de ditá-las, depois de as ter corrigido mentalmente durante a noite.

"Por trás da cortina de pano roída pelas traças, uma claridade leitosa anuncia a aproximação da manhã. Doem-me os calcanhares, sinto a cabeça apertada num torno, e todo o meu corpo está encerrado numa espécie de escafandro. O meu quarto sai lentamente da penumbra. Observo pormenorizadamente as fotografias dos meus queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, um pequeno ciclista de folha enviado por um camarada na véspera do Paris-Roubaix, e o cavalete que sustenta a cama onde estou incrustado há seis meses como um bernardo-eremita sobre o seu rochedo.
Não preciso de reflectir durante longo tempo para saber onde me encontro e recordar-me de que a minha vida sofreu uma reviravolta naquela sexta-feira, dia 8 de Dezembro do ano passado. Até essa altura, nunca tinha ouvido falar do tronco cerebral. Naquele dia descobri abruptamente essa peça fundamental do nosso computador de bordo, passagem obrigatória entre o cérebro e os terminais nervosos, quando um acidente cardio-vascular me deixou o dito tronco fora do circuito. Antigamente chamava-se-lhe “ligação ao cérebro” e a sua falta provocava muito simplesmente a morte. O progresso das técnicas de reanimação tornou o castigo mais sofisticado. É possível escapar, mas mergulha-se naquilo que a medicina anglo-saxónica baptizou muito justamente com o nome de locked-in-syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica encerrado dentro de si próprio, com o espírito intacto e os batimentos da pálpebra esquerda como único meio de comunicação.
Evidentemente, o principal interessado é o último a ser posto ao corrente dessas prerrogativas. Pela minha parte, tive direito a vinte dias de coma e algumas semanas de nevoeiro antes de me aperceber verdadeiramente da extensão dos danos. Só emergi verdadeiramente no fim de Janeiro, neste quarto 119 do Hospital Marítimo de Berck, onde agora penetram os alvores da madrugada.
É uma manhã vulgar. As sete horas, o carrilhão da capela recomeça a pontuar a fuga do tempo, de quarto em quarto de hora. Após a trégua da noite, os meus brônquios obstruídos põem-se a roncar ruidosamente. Crispadas sobre o lençol amarelo, as minhas mãos incomodam-me, sem que consiga determinar se estão a arder ou geladas. Para lutar contra o anquilosamente, desencadeio um movimento reflexo de alongamento que faz mover os braços e as pernas alguns milímetros. Tanto basta, por vezes, para aliviar um membro dorido.
O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer. É possível elevar-me no espaço ou no tempo, partir a voar para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. É possível ir visitar a mulher amada, deslizar junto dela e acariciar o seu rosto, ainda adormecido. É possível construir castelos no ar, conquistar o Tosão de Ouro, descobrir a Atlântida, realizar os sonhos de criança e os sonhos de adulto.
Basta de dispersão. É sobretudo necessário que eu componha o início deste diário de viagem imóvel, para estar pronto quando o enviado do meu editor vier recolher este ditado feito letra a letra. Na minha cabeça, mastigo dez vezes cada frase, corto uma palavra, acrescento um adjectivo, e decoro o meu texto, parágrafo a parágrafo.
Sete e meia. A enfermeira de serviço interrompe o curso dos meus pensamentos. Segundo um ritual bem ensaiado, corre a cortina, verifica a traqueotomia e o gota-a-gota, e acende a televisão com vista à obtenção de informações. De momento, um desenho animado conta a história do sapo mais rápido do Oeste. E se eu formulasse o voto de ser transformado em sapo?"

Bauby faleceu a 9 de Março de 1997, mas deixou este seu testemunho impressionante, bem escrito, e melhor traduzido, do que é ter um intelecto vivo dentro de um corpo morto.

Jean-Dominique Bauby, O escafandro e a borboleta, Livros do Brasil, 1999


Realmente o ser humano é muito peculiar. Digo isto depois de ter assistido ao filme “O escafandro e a borboleta”. O filme tem como protagonista Jean-Dominique Bauby, editor da revista Elle. Jean é do tipo de pessoa que gosta de curtir a vida, de estar sempre com mulheres lindas e andar em carros possantes, porém, como até já vimos muito no cinema, ele sofre um derrame que o deixa completamente paralisado, lhe restando apenas os movimentos de seu olho esquerdo e a audição. Esta experiência o faz ver as coisas de outra forma (como seria de se esperar), mas sem perder o bom humor.
Eu sei que este enredo tem tudo para ser mais um daqueles clichês cinematográficos que já viraram motivo até de chacotas por parte dos cinéfilos mais “puristas” se não fossem dois detalhes: o fato da história ser real e do director do filme, Julian Schnabel, se utilizar de um recurso interessantíssimo para filmar. Durante pelo menos os 20 minutos iniciais do filme o espectador tem a sensação de estar vendo como o protagonista da história via, apenas com seu único olho sadio.
A perspectiva que o filme adquire é fantástica, nos dando a sensação de impotência diante dos acontecimentos que ocorriam em torno de sua cama. Nem mesmo o protagonista sabia o que havia ocorrido, já que sua consciência se apresentava completamente lúcida e sem a lembrança do momento do derrame. A agonia da impotência é algo marcante no filme até que, aos poucos, seu olho se torna o único meio de comunicação entre o interior e o exterior e é exactamente por meio deste que Jean-Dominique escreve sua história, através de piscadas e de um sistema de codificação.
Além destes dois elementos que citei tenho que falar de um terceiro; a actuação de Max von Sydow como o pai de Jean. Para mim uma das melhores interpretações que já vi no cinema. Apesar da curtíssima aparição a força de sua expressão é de tal forma arrebatadora que percebi finalmente porque Ingmar Bergman fez tantos filmes como ele.
Mas o que quis dizer com minha frase lá do começo afinal?
Bom, assistir a um filme destes faz com que você pense em tais dificuldades, como seria se fosse com você e etc. e logo toma conta do espírito uma espécie de agradecimento interior por ter seus movimentos, por poder sentir o vento, andar, tomar um café depois da sessão sem precisar de tubos ou enfermeiras.
Mas isto não dura mais que alguns minutos. Logo o quotidiano reassume seu domínio e aquele filme, que deveria ter sido um aprendizado sobre os valores da vida logo desaparece na primeira discussão com o flanelinha que “guardou” seu carro.
Isto é peculiar e me deixa profundamente irritado, o fato de nunca agradecermos por nada, apenas desejar, pedir, querer e as coisas que muitas vezes são as mais importantes não conseguimos enxergar…nem com os dois olhos sãos!
Procure assistir o filme e verifique se este mesmo sentimento se apodera de você e por quanto tempo! Vale pelo filme, vale pela experiência.

O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon)
País: Estados Unidos/França
Direção: Julian Schnabel
Roteiro: Jean-Dominique Bauby (romance), Ronald Harwood (roteiro)
Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais, Niels Arestrup, Olatz López Garmendia, Max von Sydow

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